Organização Cultural de Defesa da Cidadania - Entidade Apartidária

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Patriarcado da violência.



Débora Diniz

A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um
dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer
e consumo dos homens
Eliza Samudio está morta. Ela foi sequestrada, torturada e
assassinada. Seu corpo foi esquartejado para servir de alimento para
uma matilha de cães famintos. A polícia ainda procura vestígios de
sangue no sítio em que ela foi morta ou pistas do que restou do seu
corpo para fechar esse enredo macabro. As investigações policiais
indicam que os algozes de Eliza agiram a pedido de seu ex-namorado, o
goleiro do Flamengo, Bruno. Ele nega ter encomendado o crime, mas a
confissão veio de um adolescente que teria participado do sequestro de
Eliza. Desde então, de herói e "patrimônio do Flamengo", nas palavras
de seu ex-advogado, Bruno tornou-se um ser abjeto. Ele não é mais
aclamado por uma multidão de torcedores gritando em uníssono o seu
nome após uma partida de futebol. O urro agora é de "assassino".
O que motiva um homem a matar sua ex-namorada? O crime passional não é
um ato de amor, mas de ódio. Em algum momento do encontro afetivo
entre duas pessoas, o desejo de posse se converte em um impulso de
aniquilamento: só a morte é capaz de silenciar o incômodo pela
existência do outro. Não há como sair à procura de razoabilidade para
esse desejo de morte entre ex-casais, pois seu sentido não está apenas
nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas em uma matriz
cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres. Tentar
explicar o crime passional por particularidades dos conflitos é
simplesmente dar sentido a algo que se recusa à razão. Não foi o
aborto não realizado por Eliza, não foi o anúncio de que o filho de
Eliza era de Bruno, nem foi o vídeo distribuído no YouTube o que
provocou a ira de Bruno. O ódio é latente como um atributo dos homens
violentos em seus encontros afetivos e sexuais.
Como em outras histórias de crimes passionais, o final trágico de
Eliza estava anunciado como uma profecia autorrealizadora. Em um vídeo
disponível na internet, Eliza descreve os comportamentos violentos de
Bruno, anuncia seus temores, repete a frase que centenas de mulheres
em relacionamentos violentos já pronunciaram: "Eu não sei do que ele é
capaz". Elas temem seus companheiros, mas não conseguem escapar desse
enredo perverso de sedução. A pergunta óbvia é: por que elas se mantêm
nos relacionamentos se temem a violência? Por que, jovem e bonita,
Eliza não foi capaz de escapar de suas investidas amorosas? Por que
centenas de mulheres anônimas vítimas de violência, antes da Lei Maria
da Penha, procuravam as delegacias para retirar a queixa contra seus
companheiros? Que compaixão feminina é essa que toleraria viver sob a
ameaça de agressão e violência? Haveria mulheres que teriam prazer
nesse jogo violento?
Não se trata de compaixão nem de masoquismo das mulheres. A resposta é
muito mais complexa do que qualquer estudo de sociologia de gênero ou
de psicologia das práticas afetivas poderia demonstrar. Bruno e outros
homens violentos são indivíduos comuns, trabalhadores, esportistas,
pais de família, bons filhos e cidadãos cumpridores de seus deveres.
Esporadicamente, eles agridem suas mulheres. Como Eliza, outras
mulheres vítimas de violência lidam com essa complexidade de seus
companheiros: homens que ora são amantes, cuidadores e provedores, ora
são violentos e aterrorizantes. O difícil para todas elas é discernir
que a violência não é parte necessária da complexidade humana, e muito
menos dos pactos afetivos e sexuais. É possível haver relacionamentos
amorosos sem passionalidade e violência. É possível viver com homens
amantes, cuidadores e provedores, porém pacíficos. A violência não é
constitutiva da natureza masculina, mas sim um dispositivo cultural de
uma sociedade patriarcal que reduz os corpos das mulheres a objetos de
prazer e consumo dos homens.
A violência conjugal é muito mais comum do que se imagina. Não foi por
acaso que, quando interpelado sobre um caso de violência de outro
jogador de seu clube de futebol, Bruno rebateu: "Qual de vocês que é
casado não discutiu, que não saiu na mão com a mulher, né cara? Não
tem jeito. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Há
pelo menos dois equívocos nessa compreensão estreita sobre a ordem
social. O primeiro é que nem todos os homens agridem suas
companheiras. Embora a violência de gênero seja um fenômeno universal,
não é uma prática de todos os homens. O segundo, e mais importante, é
que a vida privada não é um espaço sacralizado e distante das regras
de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar
para garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja na casa ou na
rua. A Lei Maria da Penha é a resposta mais sistemática e eficiente
que o Estado brasileiro já deu para romper com essa complexidade da
violência de gênero.
Infelizmente, Eliza Samudio está morta. Morreu torturada e certamente
consciente de quem eram seus algozes. O sofrimento de Eliza nos
provoca espanto. A surpresa pelo absurdo dessa dor tem que ser capaz
de nos mover para a mudança de padrões sociais injustos. O modelo
patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a
mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens. Bruno não
é louco, apenas corporifica essa ordem social perversa.
Outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência da
impunidade à violência de gênero. A impunidade facilita o surgimento
das redes de proteção aos agressores e enfraquece nossa sensibilidade
à dor das vítimas. A aplicação do castigo aos agressores não é
suficiente para modificar os padrões culturais de opressão, mas indica
que modelo de sociedade queremos para garantir a vida das mulheres.
DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA E PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Fonte: http://www.estadao. com.br/especiais /

Um comentário:

  1. A violência em geral começa pelo desejo insano por béns materias. O ter é mais importante que o ser, como o proprio texto indica.

    ResponderExcluir