Organização Cultural de Defesa da Cidadania - Entidade Apartidária

domingo, 8 de agosto de 2010

Pílulas-para-os-nervos

A medicalização do sofrimento humano

Marco Antonio Alves Brasil

Há uma concentração da nossa população em áreas
metropolitanas, particularmente nos Estados de São Paulo e

do Rio de Janeiro. Muitos deixaram o campo na esperança de
conquistar uma vida melhor na cidade grande, onde vivem
nas periferias e nos morros, sem perspectiva de trabalho,
condenadas ao desemprego ou ao subemprego, à educação
e assistência médica precárias.

O sofrimento é inerente à vida humana; contudo, quando se torna desnecessário? Em que momento vira expressão de doença ou transtorno e passa a ser merecedor de tratamento? Quando sentimentos como tristeza, remorso, vergonha e a desesperança deixam de ser legítimas manifestações humanas para se tornar transtornos devidamente catalogados em nossas classificações diagnosticas, assumindo assim a condição de "uma questão médica'?

Assiste-se atualmente a uma inflação da procura por médicos. A medicina é frequentemente utilizada para fins publicitários. O adjetivo "medicinal" traz a muitos produtos uma garantia de sucesso. As tensões, as dificuldades e a violência da vida social tornam-se facilmente "estresses" e "traumas", levando à "depressão". Há uma concentração da nossa população em áreas metropolitanas, particularmente nos estados de São Paulo e do Rio de janeiro. Muitos deixam o campo na esperança de conquistar uma vida melhor na cidade grande. Há, portanto, um enorme contingente de pessoas que vivem nas periferias c nos morros, sem perspectiva de trabalho, condenadas ao desemprego ou ao subemprego, à educação e assistência médica precárias.

Sem ter como satisfazer as necessidades básicas - principalmente a alimentação -, as pessoas de baixa renda recorrem constantemente a drogas tranquilizantes para vencer os dramas existenciais. As pílulas para os nervos ou para dormir são usadas frequentemente pelas pessoas de baixa renda, para superar o estresse provocado pelas poucas horas de sono, pela exploração do trabalho e pela alimentação não satisfatória, além da impossibilidade de ter controle sobre a vida. Essas pessoas assumem a condição de doentes e suprimem os gastos com a alimentação para comprar remédios contra cansaço, velhice, "sangue quente" ou fortificantes. Entre estes últimos, são muito consumidos os complexos vitamínicos, ministrados
muitas vezes por orientação de farmacêuticos ou por influência da propaganda. Geralmente, os pacientes recorrem a tais medicamentos sempre que sofrem uma "crise de nervos", quadro composto por queixas sintomáticas difusas, como tonturas, palpitações, "vista escura", desmaios, esquecimentos, insônias, medo de sair sozinho à rua, "perna bamba", "dormência nas pernas", cansaço, falta de apetite, "buraco no estômago", "tremores no corpo", fisgadas na cabeça, ardor e frio na cabeça, dores difusas, irritabilidade, crises de choro, vontade de bater nos filhos, vontade de gritar, vontade de morrer, agonia no peito, desinteresse sexual, moleza, entre outros.

Em pesquisa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), feita em 25 comunidades rurais da região serrana do Espírito Santo, verificou-se que quase um terço dos entrevistados sofriam dos chamados problemas dos nervos. Para minimizar os sintomas, 88% do grupo tomava continuamente um ou mais psicotrópicos adquiridos em farmácia, muitas vezes sem receita médica. Em 53% dos relatos, o "remédio de nervo" foi citado espontaneamente. Foram citados pêlos participantes da pesquisa 26 tranquilizantes; 11% dos entrevistados indicaram como sintoma de doença o fato de não conseguirem dormir e 12% apresentavam dor no corpo, fraqueza, cansaço, falta de forças, "zonzeira", "bambeira", vozes na cabeça, preocupação, dor de cabeça. Por conta desse cenário, 29,5% dos indivíduos já haviam sido internados.

Outros trabalhos de campo junto à população carente de diferentes regiões do Brasil apontam que por trás dessas "doenças" encontram-se a pobreza, a impossibilidade de participar produtivamente da sociedade, o não reconhecimento social, o desamparo, o desemprego, a fome e a perda da
esperança de vencer na vida.

É ilusório supor que a solução para todos os sofrimentos do homem estaria dentro do modelo médico. É inconcebível querer abordar ou resolver as questões decorrentes do sofrimento humano sem colocá-las em todos os níveis, dentro de seus contextos socioculturais. Não se trata de negar a importância das diferenças que constituem a personalidade de cada um, mas de ver que toda pessoa não pode ser completamente entendida, caso não seja levado em consideração o ambiente cultural e social onde vive, seus valores sociais e culturais, bem como o lugar que a sociedade concede ao indivíduo, ao valor que ela confere à liberdade e ao direito ao lazer.

As questões relacionadas à saúde mental passam por discussões centrais relacionadas à cultura de paz, à segurança, à proteção ao ambiente e aos direitos humanos. Não há progresso na saúde sem transformações sociais. Toda resposta aos problemas de saúde da população que for concebida unicamente em termos de assistência médica acaba ultrapassando as possibilidades econômicas do país e está fadada ao fracasso. Só haverá real progresso em saúde mental se esse avanço for acompanhado de justiça social, de condições de vida digna para nossa população, de iguais oportunidades de educação e trabalho, e de direitos e deveres iguais para todos.

Marco Antonio Alves Brasil; professor adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é chefe do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital Clementino Fraga Filho e ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Publicado em Dialógico – Revista do Movimento do Ministério Público Democrático – Ano VII – no. 29 (www.mpd.org.br)

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