Organização Cultural de Defesa da Cidadania - Entidade Apartidária

sábado, 3 de abril de 2010

Eleições no Chile

Dina Lida Kinoshita* ::A eleição no Chile e sua complexa realidade


Concluído o processo eleitoral no Chile, vencido pelo megaempresário Sebastián Piñera, com um resultado superapertado sobre o democratacristão Eduardo Frei, da Concertacion, é importante que se entenda melhor o que é a sociedade chilena, dividida ao meio desde a redemocratização, há vinte anos.

Antes de tudo, é bom que se saiba que há na pátria de Pablo Neruda insatisfações políticas de todo lado. Pinochetistas ressentidos com Piñera por não dar aval explícito aos métodos utilizados pela ditadura, e esquerdistas ressentidos com a política da Concertación apesar da grande popularidade da presidente Michelle Bachelet.

Ainda no plano político, há no país um bloco expressivo que vai da centro-esquerda à esquerda e outro que vai da centro-direita à extrema direita. Nem as concepções pinochetistas nem as do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) estão mortas embora vistam novas roupagens.

Examinemos as duas últimas décadas pós-redemocratização. O processo de derrubada da ditadura de Pinochet não permitiu a instalação de uma Assembléia Nacional Constituinte nem grandes mudanças na Constituição vigente, justamente porque não há maioria absoluta em nenhum dos dois blocos. A herança da ditadura deixou intacta a lei do “um terço de senadores vitalícios” ou o sistema binomial de listas eleitorais que na prática dá uma certa estabilidade ao regime atual mas só permite eleger candidatos das grandes coalizões. Os senadores vitalícios garantem maioria absoluta à direita no Senado da República e obstruem todas as propostas de mudanças sociais, tais como o divórcio ou o aborto, dois problemas que afetam sobremaneira as gerações mais jovens e as feministas.

O sistema binomial afeta setores da esquerda chilena que chegam a obter mais de 5% dos votos e não têm sequer um único representante no parlamento como é o caso do Partido Comunista Chileno.

Apesar destes fatos não há um processo sério de mobilização por uma nova Constituição e muitos setores da esquerda preferem criticar a Concertación por não se empenhar por mudanças como se fosse fácil fabricar maiorias absolutas numa sociedade dividida ao meio. Isto também é um sinal de isolamento da extrema esquerda que ainda sonha com soluções que passam por cima de uma Constituição democrática ou não dão a devida importância à elaboração de uma nova Carta, já que esta não terá a feição que lhes interessa. É o famoso “tudo ou nada” muito comum entre as esquerdas latino-americanas.

Por outro lado, o Chile não escapa à crise internacional da esquerda. O PC chileno já vinha num processo de definhamento devido à repressão no período da ditadura e se debilita ainda mais após a queda do “socialismo real” por seu sectarismo, fechando os olhos para as grandes mudanças que vem ocorrendo no mundo desde os anos 80 do século passado. Mas o grande Partido Socialista Chileno (PS) que deu a ossatura à Frente Popular que elegeu Salvador Allende, o primeiro presidente marxista da América Latina, está em frangalhos. Ricardo Lagos, predecessor de Bachellet na Presidência da República, abandonou o PS e fundou o Partido por la Democracia (PPD).

Outro aspecto a considerar é que tanto Jorge Arrate, candidato do Partido Comunista, como Enrique Ominami, que se colocou como candidato independente no primeiro turno, são egressos do PS e o primeiro deles já foi seu presidente. O deslocamento de Arrate do PS para o PC demonstra o descontentamento de uma ala de esquerda do PS com o governo Bachellet, considerado muito tecnocrata e pouco político, não obstante a ênfase em políticas públicas responsáveis pela popularidade da atual presidente. Já Ominami amealhou votos entre um público jovem cujas críticas são mais difusas e não viam muita diferença entre os dois principais candidatos e, no segundo turno, mesmo com o apoio expresso deste a Frei, dividiram seus votos entre os dois por razões de simpatia pessoal ou outro motivo qualquer.

Não paira nenhuma dúvida que com a ascensão do candidato da direita ao Palácio de la Moneda, a política e a economia chilenas não terão muita diferença. Do ponto de vista econômico, o Chile constitui - desde o tempo da ditadura - um espaço de drenagem de recursos. A economia, essencialmente voltada para a exportação, tem como principais produtos o cobre, as frutas, a madeira e o peixe. O que está ocorrendo é uma superexploração destes recursos naturais que ocasionará um empobrecimento irreversível quando o recurso se esgotar. Contudo, diminuir o ritmo desta exploração significa menor exportação, área considerada vital para o modelo chileno. Parece que este esgotamento começa a ser visível, mas não há grandes investimentos em ciência e alta tecnologia que possam mudar este perfil.

Como se constata, há no Chile sinais da própria crise dos partidos, fenômeno que ocorre em todo o mundo. Piñera é um grande empresário e não um político tradicional vinculado a uma máquina partidária. É um processo parecido com o de Vicente Fox no México (O gerente da Coca-Cola no país de Emiliano Zapata cooptou para o Ministério das Relações Exteriores o conhecido acadêmico de centro-esquerda Jorge Castañeda).

A política externa chilena também não deve mudar muito na medida em que, diferentemente de outros países da região, esta política defende os interesses do país sem utilizar critérios ideológicos em suas decisões. Assim, o Chile manteve boas relações com os Estados Unidos ao longo dos últimos vinte anos, sua economia de livre mercado é a mais aberta da América do Sul, sem as restrições da economia brasileira ou argentina. Além de ser membro do Mercosul, o país andino tem tratados de livre comércio com a União Européia e, desde 2004, com os EEUU. É membro da OCDE e já tem um acordo estratégico com o México aprovado durante o governo Bachellet.

Piñera já vem convidando técnicos competentes da Concertación para o seu governo, procedimento utilizado por Nicolas Sarkozy na França. Isto pode deflagrar uma crise ainda maior entre os socialistas. Mas não deixa de aflorar a crise dos partidos de um modo geral. As velhas bandeiras estão muito difusas e as novas, bem como as formas de luta ainda estão por nascer. Entre os que se aferram ao passado e os que olham para o futuro com bandeiras como a cidadania e o poder local como meio de aprofundar a democracia, um meio ambiente sustentável, uma governança global demcrática com justiça e paz vai se abrindo um fosso e novas formas de organização devem surgir para superar os desafios do século XXI.

Sem deixar de levar em conta o fato de Frei não ter sido um candidato que empolgou os eleitores, este importante pleito sinaliza claramente a crise da esquerda e centro-esquerda que não conseguem visualizar o que é fundamental numa determinada etapa de conquistas para a qual a coalizão deveria ser mais ampla a fim de eleger mais representantes no Parlamento e, lamentavelmente, não é o que vem ocorrendo; ao contrário, os diversos partidos e grupos internos no partido, se digladiam ao longo dos anos.

Por isso, considerar-se o resultado da eleição chilena como um retrocesso talvez não capte a singularidade e a complexidade desse curioso país latinoamericano. Certamente o novo contexto criado poderá propiciar, a médio prazo, um novo realinhamento de forças que possa efetuar as reformas que o país exige e a atual coalizão de centro-esquerda não foi capaz de realizar.

* Dina Lida Kinoshita é física, membro da Cátedra Unesco para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, do Instituto de Estudos Avançados.

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